domingo, 7 de novembro de 2010

Assim falou Zaratustra /A Saudação

Ia já a tarde muito alta quando Zaratustra, depois de inúteis correrias tornou à sua caverna. No momento, porém, em que apenas se encontrava a vinte passos da entrada sucedeu o que menos se podia esperar: tornou a ouvir o grande grito de angústia. E, coisa assombrosa, naquele instante o grito saía mesmo da sua caverna; mas era um grito prolongado, estranho e múltiplo, e Zaratustra distinguia nele perfeitamente muitas vozes, conquanto à distância parecesse provir de uma só boca.

Zaratustra precipitou-se para a caverna. Que espetáculo o esperava a seguir aquele concerto! Estavam ali reunidos todos os que encontrara durante o dia: o rei da direita e o rei da esquerda, o velho encantador, o Papa, o mendigo voluntário, a sombra, o consciencioso, o lúgubre adivinho e o jumento; o homem mais feio colocara uma coroa e cingira duas faixas de púrpura — porque gostava de se disfarçar e adornar como todos os feios. — No meio daquela triste reunião, a águia de Zaratustra estava de pé inquieta e com as penas eriçadas, porque tinha de responder a demasiadas coisas para que o seu orgulho não tinha resposta; e a astuta serpente enroscara-se-lhe em torno do pescoço.

Zaratustra olhou tudo aquilo com grande assombro; depois examinou cada um dos hóspedes de per si, com benévola curiosidade, lendo nas suas almas e tornando a assombrar-se. Enquanto ele assim fazia, os que estavam reunidos levantaram-se, aguardando respeitosamente que Zaratustra tomasse a palavra:

E Zaratustra falou assim:

“Homens singulares que desesperais! Foi pois o vosso grito de angústia que ouvi? E sei agora aonde hei de ir buscar o que hoje procurei em vão, o homem superior.

Está sentado na minha própria caverna! Para que me hei de admirar? Fui eu mesmo que o atrai com os meus oferecimentos de mel e com a maliciosa tentação da minha felicidade.

Mas vós, proferis gritos de angústia, parece-me que andais muito em desacordo; os vossos corações entristecem-se uns aos outros ao ver-vos aqui reunidos. Primeiro de tudo devia ter estado aqui alguém: que vos fizesse rir outra vez, um chistoso, um dançarino, um catavento, uma ventoinha, algum velho louco: que vos parece isto?

Perdoem-me os que desesperam empregar eu tão frívolas palavras, indignas, na verdade, de tais hóspedes! Mas não adivinhais o que me enche de petulância o coração.

Desculpai-me! Sois vós mesmos, e o espetáculo que me ofereceis. Que todo o que contempla um desesperado cobra ânimo. Para consolar um desesperado... qualquer se julga forte bastante.

A mim destes-me vós essa força — um dom precioso, hóspedes ilustres, um verdadeiro presente de hóspedes! — Pois bem; não vos enfadeis se por minha vez vos ofereço o meu.

Este é o meu reino e o meu domínio; mas o que me pertence deve ser vosso durante esta tarde e esta noite. Sirvam-vos os meus animais, e seja a minha caverna o vosso lugar de repouso!

Aqui albergados, nenhum de vós deve desesperar; eu protejo toda a gente contra os animais selvagens dos meus domínios. Segurança: eis a primeira coisa que vos ofereço!

A segunda é o meu dedo mínimo. E se vos dou o dedo mínimo, tomareis a mão inteira e o coração ao mesmo tempo. Sede bem-vindos aqui; saúde, hóspedes meus!”

Assim falava Zaratustra, com amável e malicioso sorriso. Depois daquela saudação os hóspedes tornaram a inclinar-se guardando respeitoso silêncio; mas o rei da direita respondeu em nome de todos:

“Na maneira de nos ofereceres a mão, e na tua saudação, Zaratustra, conhecemos quem és: Curvaste-te ante nós.

Mas quem, como tu, saberia curvar-se com tal orgulho? Isto ergue-nos a nós, reconfortando-nos.

Só para contemplar tal coisa subiríamos de bom grado a montanhas mais altas do que esta. Porque viemos ávidos do espetáculo: queríamos ver o que aclara olhos turvos.

E agora acabaram-se todos os nossos gritos de angústia. Já estão abertos e extasiados os nossos sentidos e os nosso corações. Um pouco mais, e o nosso ânimo brilhará desenfadado.

Zaratustra, na terra nada cresce mais satisfatório do que uma elevada e firme vontade. Uma elevada e firme vontade é a planta mais bela da terra. Semelhante árvore anima uma paisagem inteira.

Eu comparo a um pinheiro Zaratustra aquele que, como tu, cresce esbelto, silencioso, duro, solitário, feito da maneira mais flexível, soberbo, querendo enfim tocar o seu senhorio com verdes e vigorosos ramos, dirigindo enérgicas perguntas aos ventos, às tempestades, a quanto é familiar às alturas, e respondendo mais energicamente ainda imperativo e vitorioso. Ah! Quem não subiria às alturas para contemplar semelhantes plantas?

A vista da tua árvore, Zaratustra, anima o triste e abatido e também serena o inquieto e cura o seu coração.

E, certamente, para a tua montanha e para a tua árvore dirigem-se hoje muitos olhares; há muitos que aprenderam a perguntar: “Quem é Zaratustra?”

E todos aqueles em cujos ouvidos chegaste a destilar o teu mel e as tuas canções, todos os ocultos, todos os solitários disseram de repente ao seu coração:

“Ainda vive Zaratustra? Já não vale a pena viver; tudo é igual, tudo é vão, se não vivemos com Zaratustra!”

“Porque não chega o que se anunciou há tanto tempo? — assim pergunta um grande número — devora-lo-ia a soledade? Ou nós é que teremos que o ir buscar?”

Agora até a própria soledade abranda e se quebra, como túmulo que se abre e já não pode reter os seus mortos. Por toda parte se vêm ressuscitados.

Agora as ondas sobem cada vez mais em torno da tua montanha, Zaratustra. E apesar da elevação da tua altura, é mister que muitas subam até ti; a tua barca já não deve permanecer muito tempo abrigada.

E termos vindo à tua caverna, nós, os que desesperamos, e já não desesperamos, não é senão um sinal e um presságio de que vêm a caminho outros melhores do que nós.

Porque a caminho para ti se encontra também o último resto de Deus entre os homens; quer dizer, todos os homens de grande anelo, do grande tédio, da grande sociedade. Todos os que não querem viver sem poder aprender a esperar novamente; a aprender contigo, Zaratustra, a grande esperança!

Assim falou o rei da direita e pegou na mão de Zaratustra para lha beijar, mas Zaratustra substraiu-se à sua veneração e retrocedeu assombrado, silencioso e sumindo-se de repente, como muito ao longe. Passados instantes, todavia, voltou para o pé dos seus hóspedes, e olhando-os com olhos límpidos e prescrutadores, disse:

“Hóspedes meus, homens superiores, quero-vos falar em alemão e claramente; não era a vós que eu esperava nas montanhas”.

“Em alemão e claramente? Deus nos acuda! — disse então à parte o rei da esquerda. — Bem se vê que este sábio do Oriente não conhece estes bons alemães! Quererá dizer “em alemão e barbaramente”. Bom! Hoje ainda não é este o pior dos gostos!”

Zaratustra continuou:

“Pode ser que todos vós sejais superiores, mas para mim não sois bastante altos nem bastante fortes.

“Para mim” significa o implacável que reside em mim, mas que não residirá sempre. E se me pertenceis, não é, todavia como meu braço direito.

Que o que anda com pernas doentes e fracas, como vós, primeiro que tudo quer — conscientemente ou não — que o contemplem.

Eu, porém, não guardo contemplações com os meus braços e as minhas pernas, eu não guardo contemplações com os meus guerreiros.

Como poderíeis ser bons para a minha guerra?

Convosco perderia todas as vitórias, e há alguns de vós que cairiam só ao ouvir o rufar dos meus tambores.

Também para mim não sois bastante belos nem bem nascidos. Para as minhas doutrinas preciso espelhos límpidos e polidos; na vossa superfície desnaturar-se-ia a minha própria imagem.

Sobre os vossos ombros pesam muitas cargas, muitas recordações; nos vossos recônditos estão sentados muitos anões maldosos. Também em vós há populaça escondida.

E embora sejais elevados e de espécie superior, em vós encerram-se muitas coisas torcidas e disformes. Não há ferreiro no mundo capaz de vos reformar e endireitar.

Apenas sois pontes; passe sobre vós para o outro lado gente mais elevada! Representais degraus; não vos enfadeis, portanto, com aquele que suba por cima de vós até à sua altura.

Talvez da vossa semente nasça um dia para mim um verdadeiro filho, um herdeiro completo; mas esse ainda está afastado.

Vós, porém, não sois os seres a quem pertencem o meu nome e os meus bens deste mundo.

Não é a vós que espero nestas montanhas, não é convosco que tenho o direito de descer pela última vez.

Vós apenas sois sinais precursores, anúncios de que se encaminham para mim outros mais elevados; e não os homens do grande anelo, do grande tédio, da grande sociedade e aquilo a que chamastes “resto de Deus sobre a terra”.

Não, não! Mil vezes não! A outros espero nestas montanhas e sem eles não me arredo daqui; espero outros mais altos, mais fortes, mais vitoriosos, mais alegres, retangulares de corpo e alma. É preciso chegarem os leões risonhos!

Hóspedes meus, homens singulares, ainda não ouvistes falar dos meus filhos? Não ouvistes dizer que se encaminham para aqui?

Falai dos meus jardins, das minhas Ilhas Bem-aventuradas, da minha bela e nova espécie. Por que me não falais disso?

Da vossa estima imploro esta fineza: falai-me de meus filhos. Para isso sou rico, para isso me empobreci. Quanto dei!

E quanto daria para ter uma coisa: esses filhos, essas plantações vivas, essas árvores da vida da minha vontade e da minha mais alta esperança!”

Assim falava Zaratustra, mas interrompeu de súbito o discurso porque o assaltou o seu gramde desejo, e cerrou os olhos e a boca, tal era a agitação do seu peito.

E todos os hóspedes guardaram silêncio também e permaneceram imóveis e confusos, a não ser o velho feiticeiro, que acenava com as mãos e contraía o semblante.



http://pt.wikisource.org/wiki/Assim_falou_Zaratustra


http://pt.wikipedia.org/wiki/Assim_Falou_Zaratustra

Sem comentários:

Enviar um comentário