quarta-feira, 1 de junho de 2011

NÃO, NÃO SUBSCREVO.m4v



Não, não, não subscrevo, não assino

que a pouco e pouco tudo volte ao de antes,

como se golpes, contra-golpes, intentonas

(ou inventonas - armadilhas postas

da esquerda prá direita ou desta para aquela)

não fossem mais que preparar caminho

a parlamentos e governos que

irão secretamente pôr ramos de cravos

e não de rosas fatimosas mas de cravos

na tumba do profeta em Santa Comba,

enquanto pra salvar-se a inconomia

os empresários (ai que lindo termo,

com tudo o que de teatro nele soa)

irão voltar testas de ferro do

capitalismo que se usou de Portugal

para mão-de-obra barata dentro ou fora.

Tiveram todos culpa no chegar-se a isto:

infantilmente doentes de esquerdismo

e como sempre lendo nas cartilhas

que escritas fedem doutras realidades,

incompetentes competiram em

forçar revoluções, tomar poderes e tudo

numa ânsia de cadeiras, microfones,

a terra do vizinho, a casa dos ausentes,

e em moer do povo a paciência e os olhos

num exibir-se de redondas mesas

em televisas barbas de falácia imensa.

E todos eram povo e em nome del' falavam,

ou escreviam intragáveis prosas

em que o calão barato e as ideias caras

se misturavam sem clareza alguma

(no fim das contas estilo Estado Novo

apenas traduzido num calão de insulto

ao gosto e à inteligência dos ouvintes-povo).

Prendeu-se gente a todos os pretextos,

conforme o vento, a raiva ou a denúncia,

ou simplesmente (ó manes de outro tempo)

o abocanhar patriótico dos tachos.

Paralisou-se a vida do país no engano

de que os trabalhadores não devem trabalhar

senão em agitar-se em demandar salários

a que tinham direito mas sem que

houvesse produção com que pagá-los.

Até que um dia, à beira de uma guerra

civil (palavra cómica pois que

do lume os militares seriam quem tirava

para os civis a castanhinha assada),

tudo sumiu num aborto caricato

em que quase sem sangue ou risco de infecção

parteiras clandestinas apararam

no balde da cozinha um feto inexistente:

traindo-se uns aos outros ninguém tinha

(ó machos da porrada e do cacete)

realmente posto o membro na barriga

da pátria em perna aberta e lá deixado

semente que pegasse (o tempo todo

haviam-se exibido eufóricos de nus,

às Áfricas e às Europas de Oeste e Leste).

A isto se chegou. Foi criminoso?

Nem sequer isso, ou mais do que isso um guião

do filme que as direitas desejavam,

em que como num jogo de xadrez a esquerda

iria dando passo a passo as peças todas.

É tarde e não adianta que se diga ainda

(como antes já se disse) que o povo resistiu

a ser iluminado, esclarecido, e feito

a enfiar contente a roupa já talhada.

Se muita gente reagiu violenta

(com as direitas assoprando as brasas)

é porque as lutas intestinas (termo

extremamente adequado ao caso)

dos esquerdismos competindo o permitiram.

Também não vale a pena que se lave

a roupa suja em público: já houve

suficiente lavar que todavia

(curioso ponto) nunca mostrou inteira

quanta camisa à Salazar ou cueca de Caetano

usada foi por tanto entusiasta,

devotamente adepto de continuar ao sol

(há conversões honestas, sim, ai quantos santos

não foram antes grandes pecadores).

E que fazer agora? Choro e lágrimas?

Meter avestruzmente a cabeça na areia?

Pactuar na supremíssima conversa

de conciliar a casa lusitana,

com todos aos beijinhos e aos abraços?

Ir ao jantar de gala em que o Caetano,

o Spínola, o Vasco, o Otelo e os outros,

hão-de tocar seus copos de champanhe?

Ir já fazendo a mala para exílios?

Ou preparar uma bagagem mínima

para voltar a ser-se clandestino usando

a técnica do mártir (tão trágica porque

permite a demissão de agir-se à luz do mundo,

e de intervir directamente em tudo)?

Mas como é clandestina tanta gente

que toda a gente sabe quem já seja?

Só há uma saída: a confissão

(honesta ou calculada) de que erraram todos,

e o esforço de mostrar ao povo (que

mais assustaram que educaram sempre)

quão tudo perde se vos perde a vós.

Revolução havia que fazer.

Conquistas há que não pode deixar-se

que se dissolvam no ar tecnocrata

do oportunismo à espreita de eleições.

Pode bem ser que a esquerda ainda as ganhe,

ou pode ser que as perca. Em qualquer caso,

que ao povo seja dito de uma vez

como nas suas mãos o seu destino está

e não no das sereias bem cantantes

(desde a mais alta antiguidade é conhecido

que essas senhoras são reaccionárias,

com profissão de atrair ao naufrágio

o navegante intrépido). Que a esquerda

nem grite, que está rouca, nem invente

as serenatas para que não tem jeito.

Mas firme avance, e reate os laços rotos

entre ela mesma e o povo (que não é

aqueles milhares de fiéis que se transportam

de camioneta de um lugar pró outro).

Democracia é isso: uma arte do diálogo

mesmo entre surdos. Socialismo à força

em que a democracia se realiza.

Há muito socialismo: a gente sabe,

e quem mais goste de uns que dos outros.

É tarde já para tratar do caso: agora

importa uma só coisa - defender

uma revolução que ainda não houve,

como as conquistas que chegou a haver

(mas ajustando-as francamente à lei

de uma equidade justa, rechaçando

o quanto de loucuras se incitaram

em nome de um poder que ninguém tinha).

E vamos ao que importa: refazer

um Portugal possível em que o povo

realmente mande sem que o só manejem,

e sem que a escravidão volte à socapa

entre a delícia de pagar uma hipoteca

da casa nunca nossa e o prazer

de ter um frigorifico e automóveis dois.

Ah, povo, povo, quanto te enganaram

sonhando os sonhos que desaprenderas!

E quanto te assustaram uns e outros,

com esses sonhos e com o medo deles!

E vós, políticos de ouro de lei ou borra,

guardai no bolso imagens de outras Franças,

ou de Germânias, Rússias, Cubas, outras Chinas,

ou de Estados Unidos que não crêem

que latinada hispânica mereça

mais que caudilhos com contas na Suíça.

Tomai nas vossas mãos o Portugal que tendes

tão dividido entre si mesmo. Adiante.

Com tacto e com fineza. E com esperança.

E com um perdão que há que pedir ao povo.

E vós, ó militares, para o quartel

(sem que, no entanto, vos deixeis purgar

ao ponto de não serdes o que deveis ser:

garantes de uma ordem democrática

em que a direita não consiga nunca

ditar uma ordem sem democracia).

E tu, canção-mensagem, vai e diz

o que disseste a quem quiser ouvir-te.

E se os puristas da poesia te acusarem

de seres discursiva e não galante

em graças de invenção e de linguagem,

manda-os àquela parte. Não é tempo

para tratar de poéticas agora.



Santa Bárbara, Fevereiro 1976 (aniversário de uma tentativa heróica

de conter uma noite que duraria décadas), publicado in Quarenta Anos de Servidão (1979) - Jorge de Sena

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