Rasura
«Quero agora fugir para enterrar de vez o que me faltou. Depois ver o que fui na forma das nuvens. Quero agora dissolver-me no mar de vozes, deixar-me engolir pelas vagas de vozes que deixo de querer ligar, sons que se derramam e vertem mel nas estrelas. Às vezes é um sussurro que me faz erguer a cabeça, que me tira os olhos do chão, de dentro de mim. Às vezes o estalar de uma película de vidro que me desperta do sonho em que vivo. Às vezes um grito vindo das estrelas que me ilumina o caminho, e ando sempre às escuras.
Deixo que uma mão me aflore a face, me percorra os dentes, mas é uma mão sem lábios, uma mão só de acariciar, e a minha sente apenas o ar quando procura um rosto.
"A tristeza é um outro nome de não termos o nosso lugar" . (Rushdie, S.; “O chão que ela pisa”; p. 317, colecção “Escritores estrangeiros da actualidade”, Planeta D’Agostini.)
Parti à procura do berço antigo que me foi roubado, do peluche abandonado num canto do casarão enorme em ruínas da minha memória.
Quero-te para toda a vida mas só se quiseres. Segues ao sabor do vento e eu não te posso acompanhar, mas transformar-me-ei num rochedo, ou num abrigo que espera sempre por notícias tuas. Farei do meu colo o continente de tantos sonhos e ficarei quieto a vê-los longínquos toda a eternidade. Esperarei por ti até quase secar de saudades e para me salvar beber-te-ei depois em todos os rostos.
Afinal não voltaste e tudo em mim escarnece a minha espera. Sei que o mundo é grande sem saber nada dele, o teu rosto é agora um túnel escuro onde caminho há tanto tempo sem encontrar o fim. O teu rosto é agora quase pó em mim, bastaria um pequeno sopro para fazer ruir a memória de um corpo, e não sei se esse pequeno sopro não foi já há muito tempo.
Quando tive a minha primeira noite de amor pensei que já poderia morrer, que já tinha tido tudo, que tinha por fim conhecido o céu. Continuei depois a querer despejar toda a vaga do meu desejo, na urgência da partilha de uma intimidade, ou se calhar apenas desaguar-me em ti, espraiar-me enlaçado em ti. Mas acabei sempre a erguer muros tão altos, depois destruía-os mas era tarde e olhava e só conseguia ver um deserto enorme.
Quando perdemos a memória somos um corpo vazio, um receptáculo para os nossos próprios restos (Don DeLillo; “Os Nomes”, p. 343, Relógio D’Água), um saco de ossos a desfazerem-se e temos urgência em inventar a História. Quando nos perdemos da memória criamos monstros, ou são os monstros que nos devoram a memória, ou são os monstros que a geram, transportam-na e ao partirem a levam com eles, ou é a memória que se estilhaça e gera corpos desolados sem saber que lugar ocupar dentro de nós.
Lembro-me de uma casa, deserta, como me foram todas. Uma casa suspensa na melancolia de um nome perdido. Amigo? Já não me lembro. De uma corda suspensa numa trave da casa. Mas parti, preferi passear a minha dor sempre pelas mesmas ruas, não para a exibir, passeá-la apenas para que não explodisse numa casa deserta, ou para a dissolver nos rostos que brilhavam nas ruas, ou incendiá-la ao beber a luz daqueles rostos.
Lembro-me de casas e de amigos de que já não me lembro. De gostar, no Inverno, de ver de cima o mar a lutar contra penhascos enormes, com um amigo de quem já não me lembro.
Se morresse enterrar-me-ia no passado, numa memória disforme de coisas perdidas a apodrecerem. Ficaria sem mais nada e preciso tanto de luz, da incandescência das coisas novas. Espero tanto por uma carícia. Alimento-me das do vento, dos beijos da água e dos frutos: cerejas, pêssegos, morangos, figos, mangas. Mas sobretudo da esperança por outras mãos de outros rostos, ou do rosto particular de um amigo triste com quem nunca falei, da esperança de que um dia as línguas se nos soltem, de poder beber o sumo das suas palavras. Mas é tão difícil nesta cidade sorrir a um amigo triste com quem nunca falei.
Sonho que estou no café antigo onde todos os dias à mesma hora vejo o meu amigo, que parece dirigir-me sempre um olhar triste, vou à casa de banho, ele entra e abraçamo-nos:
- Adoro-te.
- Fica comigo.
- Não podemos.
De repente entra outro rapaz, separamo-nos imediatamente e vamos cada um para a sua mesa. Continuamos a espreitarmo-nos timidamente. O outro vê-nos a desviarmos os olhares.
Mas já não vejo o meu amigo triste há algum tempo, acho que desde que lhe tentei sorrir e dizer olá muito baixinho. Talvez que ao olhar-me apenas visse um abismo tremendo de tanta coisa escondida que eram a única cintilação daquele enorme vazio.
Quero resgatar fantasmas se lambo a tinta com que pintei as minhas feridas. Ancorar a minha solidão em nomes perdidos, paisagens e corpos tão ténues como as nuvens num dia claro. “Fantasmas vocês que perdi e fantasma eu que os procuro entre sombras falando-vos como falam os mortos e respondendo palavras minhas, não vossas, o que espero que digam, sabendo que não diriam desse modo, se pudessem contar-me o que não conheço e talvez prefira não conhecer, o que sucedeu antes do meu nascimento ou quando era pequeno demais para entender o que sucedera e apenas me permito inventar, conforme as cartas antigas inventam o passado
não me explicam acerca dele, inventam” (António Lobo Antunes; “Que farei quando tudo arde”, p. 477, Publicações D. Quixote, 2001) .
E abraço sempre fantasmas antes de adormecer. Fantasmas ou mortos, e o que são fantasmas senão mortos vivos em mim, ou a imagem que me ficou dos vivos e dos mortos que um dia me tocaram, ou uma voz a chamar-me a cintilações tão longínquas, voz encantadora que me faz acreditar que ainda as posso resgatar. E o que são fantasmas senão corpos de mim, invocados por mim para florescer num deserto, mas se nem sequer um deserto existe serão sempre fantasmas desolados à procura de um outro lugar.
Torno-me espuma nesta cidade onde queria ser transparente e que me fez invisível, e quero sempre reconstruir um desejo que se estilhaça como as vagas atiradas às rochas, cego procuro fragmentos de sonhos perdidos, silenciosamente ainda sonho contá-los a alguém.
Torno-me uma folha seca caída no chão que espera pela rajada de vento para poder conhecer outro lugar. E fico à espera da tempestade que me possa fazer agir, ainda que seja um agir perturbado, ou um agir conduzido por um temporal. Partir sem destino, conduzido por cheiros e sabores de corpos também eles perdidos à procura de cheiros e sabores tão antigos como o tempo, de lugares sepultados na memória, lugares agora ruínas mas que não sabemos ruínas e temos medo de os não reconhecer, de passar ao largo de florestas queimadas onde deuses passeámos no início da História, num tempo sagrado que se tornou raiz.
Se não quero voltar a chorar tenho tanto medo de já não conseguir voltar a chorar por ninguém. E fico a ouvir o vento sussurrar nomes perdidos por entre as ruínas da memória onde ainda espero pelo desabrochar de uma flor. E adormeço à sombra do eco de nomes antigos. Amigos? Já não me lembro.
E ainda não sei se vivi, tolhido de medo das tempestades e dos incêndios que o desejo pudesse provocar, com o olhar sempre aflito a querer dizer mais e mais na falha da fala, encravada no medo que era um nó na garganta. Com as mãos nervosas à espera de outras, os olhos a chamar por outros.
Tento regular a intensidade do desejo criando vácuos no meu ser e experimentando a vertigem do não ser, apagar o que me apetecer ou fabricar delírios, transformando toda a História numa ficção absolutamente risível. A vida nunca foi aqui. Os que foram sepultados dentro de mim ainda me insultam, ainda me fazem mais pequeno e medroso por mais que mergulhe na vertigem, por mais que os incêndios me fascinem. E a ligar esses vácuos, vasos comunicantes onde as palavras numa correria tropeçam umas nas outras sem saber que correm para um abismo, tento resgatar as que ficaram feridas no caminho, se tratar delas com cuidado ainda me poderão salvar. As palavras doentes tornar-se-ão troncos fortes onde mil ramos podem florescer.
"Tento lembrar-me todos os dias da frase com que devo encontrar-te (...). Agora acho que amanhã não me vou esquecer. No entanto disse sempre o mesmo e esqueci-me sempre, ao acordar, das palavras com que posso encontrar-te (...). Inventei-as porque te vi os olhos cinza, mas nunca me lembro delas na manhã seguinte (...). Se ao menos conseguisse lembrar-me em que cidade é que estava a escrever" (Gabriel Garcia Marques; “Olhos de cão azul”, Quetzal, Lisboa) .
Sonho que estou num café, sentas-te na minha mesa, não falamos, de repente perguntas-me:
- Estás triste?
- Sempre compliquei muito as coisas. – Respondo-te.
- Eu também. – Respondes-me.
Levantamo-nos e saímos. Não falamos. De repente perguntas-me:
- Dás-me um abraço? – Olho para ti a sorrir, continuamos a andar em silêncio. De repente pergunto-te:
- Dás-me um abraço? – Olhas para mim a sorrir, continuamos a andar em silêncio.
"O amor nunca é uma dependência, é uma abundância e parece que nós continuamos a viver o amor por carência. Metemos no amor tudo o que não sabemos onde meter" (Inês Pedrosa; 1997, 2003; “Nas tuas mãos”, Publicações D. Quixote, Visão, p. 108).
No café sou menos que névoa, menos que teia; na esperança de uma companhia indefinida. Aqui me planto à espera das flores. Aqui me canto no mantra mais simples para te fazer surgir.
Tento lembrar-me todos os dias das canções de que fomos feitos. De um para o outro. Perdi-te há tanto tempo mas espero reencontrar-te quando de longe nos lembrarmos da mesma canção. Tento lembrar-me de todos os dias do outro som de um nome que nunca soube. Um som azul espantado por um silêncio cheio do atropelo de tantas vozes. O som da névoa a cobrir os rostos que perco de dentro de mim. Dos espaços rasgados pelo silêncio dos passeios solitários na noite.
Leio a tua letra num papel que guardei: "Que posso eu fazer senão escutar o coração inseguro dos pássaros (...) e perguntar o que aconteceu?" (Eugénio de Andrade, Primeiramente de As Palavras Interditas") "Que posso eu fazer senão beber-te os olhos enquanto a noite não cessa de crescer?" ( Eugénio de Andrade, Nocturno a duas vozes de Ostinato Rigore). Procuro o teu nome escondido nos jardins antes que o sol o apague. Ou apenas o saberei ler nesta luz de espectros que fogem dele. Planto-me às portas da noite à espera de notícias tuas ou para te reconhecer dentre os anjos com sede, anjos que voam e caiem e param para olhar para o mar, anjos como nós todos, de asas partidas, esquecidos das verdades descobertas num ontem tão antigo.
"Mas é precisamente daquilo que nos proíbem de falar que tem de se falar, fundir a língua no invisível, convertendo as palavras em espelho, navegar dentro delas sabendo que são barcos carentes de tripulação, sem outro interesse para além do enigma do que ou de quem os converteu em fantasmas, uma presença densa, mas impalpável de que temos de nos aproximar com passos de cego, neste universo onde tudo é aproximação e milagre de pedra, de carne, de trajectos sem finalidade, de deuses submersos no negrume. Com passos de cego enterraremos a bengala branca no centro ubíquo, onde palpita a eterna origem gerando vida aos borbotões. Nada podemos dizer dela, por isso, na escuridão ela é o nosso guia. Se aceitarmos a ignorância, ela converte-se em lâmpada: sob a aparente vacuidade das palavras ocultam-se os fulgores divinos..." (Alejandro Jodorowsky; O menino da Quinta-feira negra, p. 246, Oficina do Livro, Lisboa, 2002)
Agora fico, agora não saio daqui, percorro os meus livros à tua procura, sei que está num texto a tua pele, descubro os teus olhos num poema, o teu sorriso num enigma, sei que me sorris na letra de uma canção, procuro amontoar os livros que te podem criar, mas falta sempre qualquer coisa, não sei onde posso ler a tua respiração. Em que música poderei ouvir as tuas pulsações?
Continuo a perseguir sinais ao mesmo tempo que os quero mortos, inertes ou desossados de todo o poder. A carne do sonho apodrece-o se não o tornar carne, se não o fizer florescer da carne. Os mortos de mim apodrecem no ninho que ainda lhes teço.
“Não pensar em símbolos, não tentar encontrar um significado para tudo o que vejo acontecer, não transformar em imagens do que será, os sinais, sem reflexos, do que é, não misturar os deuses e a sua vida inventada com os acontecimentos reais do dia a dia. Mas como impedir-me? Toda a nossa educação converge para esse simbolismo no qual, com a doentia inclinação que temos para o inevitável e o trágico, nos esforçamos por encontrar a face do nosso próprio futuro. Somos todos pequenas Sibilas impotentes, prontos para traduzir o que é no que poderia ser. Opõem-se em nós duas linguagens sem correspondência possível, e procuramos angustiadamente pontos de contacto inexistentes. Conhecer o futuro significa destruirmo-nos , pois o conhecimento não evita a morte”. (Vintila Horia; Deus Nasceu no Exílio, p. 172, Âmbar, 2002, Porto)»
Luis Pinto Cardoso FB
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