"Reza a lenda, transmitida de geração em geração pelo povo Dogon, do Mali, que todos nós nascemos com um determinado número de palavras dentro das nossas barrigas; e, um dia, quando gastamos essas palavras, morremos.
Felizmente, todos os dias podemos armazenar centenas de novas palavras, através do nosso contacto com o mundo- as conversas com os amigos, as leituras, o teatro, o cinema… tudo traz , à nossa vida , muitas e mais palavras e assim vamos preenchendo o nosso stock , adiando o derradeiro desfecho…
Desde que esta historia (contada no livro “O Menino que guardava as Palavras na Barriga”, de Juva Batella ) apareceu na programação de “Os dias da música” do Centro Cultural de Belém, que não páro de pensar ( e de as tentar contabilizar …) nas palavras que estarão na minha barriga.
Há aquelas que nasceram comigo, sem dúvida- “Obrigada” é uma delas; certamente utilizo-a mais agora do que quando era mais jovem e dava tudo por adquirido. Nos dias de hoje agradeço tudo, a todos; por tudo e por todos. Aceito, grata, a benção que é estar viva, com saúde, ter uma família maravilhosa, amigos generosos, um trabalho que adoro. Outra das palavras que anda pelas entranhas desde sempre é “Celebrar”. Pelas mesmas razões. Que bom que é poder celebrar as coisas boas que a vida nos vai dando; acho até que há uma certa dose de arrogância em deixar para amanhã alguma coisa quando afinal, só temos a certeza de estarmos cá hoje .
A lenda da barriga que se atesta com palavras para nos mantermos vivos faz-nos pensar na importância da partilha - de palavras e não só; ficar sozinho, a olhar para o nosso umbigo tatuado por dentro com mil e uma palavras só pode, de facto , levar-nos à morte. Imagino uma barriga com palavras a murchar por dentro porque não são mimadas, porque não têm sementes novas a brotar por todo o lado. Do outro lado, uma vida risonha, pejada de palavras vivas que damos aos outros , que se trocam com os outros. À semelhança de uma caderneta: já tens esta palavra?
Algures em finais da década de 70 ( sim, do século passado…) um colega de escola perguntou à nossa querida professora, D. Celeste, o que era afinal um “tagarela” – palavra solitária que dava titulo ao livro de leituras da 3ª classe. “Tagarela é a Fernanda” – respondeu com um misto de carinho e brincadeira, olhando para mim com o seu ar sereno: tagarela é alguém que não pára de partilhar palavras. Lembro-me da risota geral e da associação a posteriori àquela alcunha. Mas recordo-me sobretudo de pensar que, um dia, ainda viria a tirar proveito da dita tagarelice.
Quando me contaram esta lenda, recuei ao século passado e parei naquele dia: será que entre linhas, a minha professora estava a augurar-me uma longa vida, repleta de palavras partilhadas, tagareladas?
Saberia já ela que o meu futuro ia passar por falar com os outros, comunicar, distribuir e recolher palavras?
Hoje as palavras são , para mim, um bem precioso. Há quem diga que o vento as leva, uma vez que as acções, essas sim, é que marcam os acontecimentos. Mas se há palavra que trouxe para dentro da minha barriga há uns anos e que tem sido usada vezes sem conta é a palavra “Coerência”. Para mim, não vale a pena pensar uma coisa, dizer outra e fazer ainda uma outra. Assim, de facto, o que dizemos não faz sentido e as palavras tornam-se vãs. E essas, é preferível mantê-las dentro da barriga. E longe do coração."
Fernanda Freitas
Luxwoman, maio 2010
Este comentário foi removido pelo autor.
ResponderEliminar