quarta-feira, 31 de agosto de 2011

Menina Olímpia e a sua criada Belarmina

A Menina Olímpia vestia espalhafatosamente, roupagens de outras épocas, eivadas de rendas, folhinhos, de tafetás, peles que teriam pertencido a alguma raposa. Verão e inverno, quase as mesmas indumentárias, usadíssimas, quase esfarrapadas, de cores que tinham sido berrantes.



Menina Olímpia e a sua criada Belarmina é um conto de José Régio, publicado nos anos quarenta e inserido em livro seu intitulado Contos.É uma história portuense, que descreve as andanças da Menina Olímpia pelas ruas da cidade, seguida de perto pela criada Belarmina. Figuras características do Porto em finais dos anos trinta, inícios dos quarenta, que eu ainda conheci, na minha meninice. A Menina Olímpia vestia espalhafatosamente, roupagens de outras épocas, eivadas de rendas, folhinhos, de tafetás, peles que teriam pertencido a alguma raposa. Verão e inverno, quase as mesmas indumentárias, usadíssimas, quase esfarrapadas, de cores que tinham sido berrantes. Uma demonstração pública do seu desequilíbro mental e da sua decadência social - o "espantalho" dos garotos que a seguiam a distância. A criada, essa, quase mendiga.


E a propósito dessas figuras, Régio faz-nos percorrer ruas, largos e praças do burgo comercial (e residencial), faz-nos, inclusivamente, entrar numa "ilha" portuense - pessoas, hábitos e falas. Para mim, portuense que sou, o conto tem um encanto especial, pela revivescência de uma época, por esse encontro com um passado longínquo. Mas, para além desse encanto, também me causou um certo mal-estar: o texto é extremamente datado. Esse texto e os restantes que constituem o livrinho, em que se insere. Esteticamente, pertencem a outra época, mais perto de Camilo Castelo Branco (escritor maior da cidade do Porto), do que das literaturas do nosso tempo. E esta constatação fez-me reler parte da poesia de José Régio e alguns dos seus ensaios, como o "António Boto e o Amor". E surpreendo-me por não encontrar, neles, a mesma "patine" do tempo. Será porque o Régio é um contista menor, se compararmos os seus contos com a sua obra poética, ensaísta ou dramatúrgica? Não creio que esta seja a explicação, mas, sim, uma outra: se todos os géneros literários evoluíram rapidamente nos últimos sessenta, setenta anos, aquele cuja evolução é mais acentuada é, sem dúvida, o da narrativa ficcional. E por uma razão que se me afigura clara: é o género que melhor expressa o nosso viver quotidiano, feito de comportamentos, de atitudes, de valores. É, pois, o género que nos dá a dimensão da nossa atualidade. Se assim é, não será a "velhice" do texto literário que está em causa, mas, sim, a nossa falta de capacidade para sairmos da "modernidade" em que nos situamos, ou seja, a nossa incapacidade de aderirmos a algo que não é do nosso tempo. E isso é mais notório na narrativa ficcional, romanesca, do que no texto poético, pela proximidade da primeira com a "narração" que nós, constantemente, elaboramos (pelo menos, para nós próprios) da nossa vida quotidiana.

Albano Estrela

Albano Estrela Professor catedrático jubilado da Universidade de Lisboa (Faculdade de Psicologia e de Ciências da Educação), nasceu no Porto em 1933. Autor de variadíssimos trabalhos na área das Ciências da Educação, tem-se dedicado, nos últimos anos, à literatura de ficção, nomeadamente ao conto e à crónica ("O Mapa dos Sabores", "Crónicas de Um Portuense Arrependido", "As Memórias que Salazar Não Escreveu", "E Se o Mal Existisse Mesmo?", entre outros).


via
http://www.educare.pt/educare/Educare.aspx

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