Estamos longe de compreender o cancro - António Vaz Carneiro, médico
Defende que a medicina portuguesa é de boa qualidade e que o Serviço Nacional de Saúde “é dos mais generosos do mundo”. Lamenta que estejamos ainda longe de compreender o modelo complexo do cancro, mas admite que venhamos a desenvolver uma vacina contra a sida. O médico afirma que Portugal não tem falta de médicos, que estes estão é mal distribuídos e que a formação de novos clínicos deveria ser feita de acordo com as necessidades do País. Lembra-se de todas as vidas que perdeu, mas das centenas que salvou guarda na memória apenas algumas histórias. Não lhe repugna a eutanásia contando que “os médicos sejam, deixados fora disso”
O que é a medicina baseada na evidência?
É uma designação de uma nova corrente de pensamento ético que terá, neste momento, 20 anos. Que defende a ideia de que a prática clínica deve ser baseada, tanto quanto possível, nos melhores dados científicos que existem. É a ideia que por trás da nossa prática clínica deverá estar um corpo de conhecimento, sólido, relevante e de boa qualidade, que nos ajude a tomar conta dos doentes. Nos últimos 20 ou 30 anos tem-se produzido, em saúde, uma quantidade absolutamente esmagadora de ensaios e de estudos. O que quer dizer que há cada vez mais evidência e com cada vez melhor qualidade.
Como avalia a medicina que se pratica em Portugal?
Avalio-a de acordo com os resultados que são, basicamente, melhores que a maior parte das outras actividades sociais a que nos dedicamos. Melhores que a educação ou que a justiça. Portanto, o esforço feito com o Serviço Nacional de Saúde teve resultados muito positivos. Há áreas para melhorar mas dado o investimento que fizemos, da maneira como o fizemos, eu diria que o resultado é muito positivo.
E em termos de investigação, como estamos?
Há uma discrepância grande entre a investigação básica (feita com células e ratos) e a investigação clínica, (feita com doentes). Nós temos uns cinco ou seis grupos de investigação biomédica básica que ombreia com os melhores do mundo, mas a investigação clínica é menos bem desenvolvida. É mais complicada de fazer porque requer muitos recursos, tem problemas éticos, práticos, burocráticos. Neste campo temos que fazer um enorme esforço para ver se conseguimos desenvolver a investigação clínica ao nível da investigação biomédica básica que já temos. E eu penso que isso vai acontecer.
O que anda a investigar?
Tantas coisas. A nossa área de interesse aqui no centro [Centro de Estudos de medicina Baseada na Evidência da Faculdade de Medicina da Universidade de Lisboa] é cardiovascular, diabetes, doenças degenerativas do sistema nervoso central e cancro. Coordeno uma equipa e também “ponho a mão na massa” nas áreas que são a minha expertise, porque nós não somos muitos e, portanto, o trabalho continua a ser dividido por todos.
Acredita na descoberta da cura para a sida ou para o cancro?
Com o conhecimento actual não. Na sida, se viermos a descobrir uma vacina, admito que poderá ser encarada como qualquer outra doença infecto-contagiosa. O vírus da sida é extremamente complexo, por isso é que ainda não foi possível sintetizar uma vacina. No cancro, estamos longe de compreender o que é verdadeiramente o seu modelo, no sentido fisiológico. Temos tido alguns sucessos mas poucos, porque o modelo é muito complexo.
Especula-se sobre o lobby da indústria farmacêutica e do poder que tem para travar descobertas científicas quando estas constituem uma ameaça para a sua actividade e sobretudo para os seus dividendos. Isto tem fundamento?
Eu sou um admirador incondicional da indústria farmacêutica. Os medicamentos são cada vez melhores, cada vez mais potentes, cada vez mais seguros, mas também cada vez mais caros, porque o modelo de negócio é um modelo à americana, onde não há qualquer controle sobre os preços. Se um cientista tivesse uma descoberta verdadeiramente importante era imediatamente contratado por uma casa farmacêutica que lhe pagava para fazer o medicamento. E se ele fizesse a descoberta numa universidade e não quisesse trabalhar para a indústria farmacêutica, a própria indústria chegava à universidade e negociava os direitos da descoberta. A natureza da descoberta de medicamentos é uma coisa pública, não pode ser ocultada. Vamos supor que um cientista tem a cura para o cancro, um sonho, pensa que isso ficava numa universidade? Nem pensar. Até se fazia um consórcio de firmas farmacêuticas para comprar o medicamento.
O sistema de saúde português
é dos mais generosos do mundo
Trabalhou nos Estados Unidos da América, conhece a realidade daquele sistema de saúde. É verdade que há muitas desigualdades?
Não há sistema de saúde americano, há muitos sistemas de saúde. Há o Medicare, por exemplo, que é uma espécie de seguro público para pessoas com mais de 65 anos. Depois há circuitos fechados, companhias de seguros, com os seus associados, como cá temos a Médis ou a Multicare. E há ainda redes como por exemplo a Veterans Administration, que é uma rede do exército, que tem milhares de hospitais e centros de saúde. Como este sistema tem desgraçadamente um modelo de Business [negócio], eles encaram aquilo como um negócio, uma actividade económica e não como um direito.
Portanto, o doente não é prioridade...
O doente é prioridade porque é o consumidor, se tiver dinheiro. O que se passa é que 45 milhões dos 300 milhões de americanos não têm acesso aos cuidados de saúde. A reforma Obama vai tentar ultrapassar isso e dar seguros a essa gente toda, com todos os problemas inerentes e isso. É um sistema iníquo porque não dá acesso às pessoas. São os cuidados mais caros do mundo, que todos os anos sobem mais 10%.
Queixamo-nos do nosso Serviço Nacional de Saúde mas estamos melhor que os americanos?
Claro que estamos. O nosso é um dos sistemas nacionais de saúde mais generosos do mundo.
Generoso mas ruinoso. O SNS apresenta-se numa situação de insustentabilidade. Acredita na regeneração deste serviço?
Não há outra alternativa. Um dos problemas da saúde em Portugal é estar demasiado politizada. A maior parte dos problemas em saúde não têm nada a ver com política, são problemas técnicos. Vacino ou não vacino, opero ou não opero, abro mais um hospital ou não... Abrir um hospital não é política, é ciência. Eu tenho uma comunidade de x pessoas, faz-se um hospital, se essa comunidade aumenta para o dobro, abre-se outro hospital, isto está estudado, não é rocket science.
Os problemas de insustentabilidade do SNS são uma oportunidade para o sector privado?
Ser o modelo público ou privado é completamente irrelevante, contando que a qualidade dos cuidados seja mantida. Eu acredito que o sistema se vá modificar na medida em que haverá uma maior flexibilidade entre o público e o privado, mas o que me interessa é que as pessoas tenham acesso. Se as pessoas tiverem acesso a cuidados de qualidade eu direi que o SNS é um sucesso. Mas vamos ter de ser nós a pagar tudo isto.
“Não há falta de médicos em Portugal.
Isso é uma falácia total e completa”
E a falta de médicos como é que se resolve?
Não há falta de médicos em Portugal. Isso é uma falácia total e completa. O que se passa é que eles estão mal distribuídos e o sistema é pouco produtivo. A produtividade não depende apenas do médico. O hospital ou centro de saúde têm de estar muito bem organizado para que um médico que lá trabalhe consiga ver muito mais doentes do que vê agora. Mas é uma verdade que vamos para a província e não há lá médicos.
E como é que podemos colocá-los lá?
Reformulando o sistema nacional de saúde e não dando hipótese aos novos médicos de seguir uma carreira que não seja essa. Lamento mas não há alternativa. É uma necessidade social. E fazia também todos os anos um desvio rápido das especialidades hospitalares desnecessárias. Os melhores sistemas nacionais do mundo assentam na medicina geral e familiar. Os ingleses estão a fazer um sistema em que a medicina geral e familiar vai controlar os hospitais. Isto é, vão comprar serviços e sem problemas de o fazerem no público ou no privado, escolhem aquele que lhe der a melhor qualidade e melhor preço. Mas isto também tem problemas, porque o mercado da saúde não é propriamente o mercado da pasta dos dentes. É absolutamente indiscutível que os cuidados primários sejam centrais em qualquer sistema que funcione bem. Quanto melhores são os cuidados primários, mais barata, racional e melhor é a medicina em geral. Eu teria tendência para uma política de saúde futura a diminuir a entrada de especialistas e ultra especialistas, que são necessários, mas menos do que nós pensamos. Vamos supor que são precisos 10 mil médicos de família, então os próximos 5 cursos seriam todos de medicina geral familiar. Sorry! Se não quiserem ir vão para os estrangeiro tirar a especialidade e depois voltem. Era assim que eu faria, não brincava em serviço.
Concorda com a contratação de médicos estrangeiros para tapar esse suposto buraco da falta de médicos?
Eu não sei responder porque não conheço a qualidade dos médicos que foram contratados. Se eles forem competentes não vejo problema nenhum. Há uma série de ilusões e mitos em saúde. Dizer-se, por exemplo, que a medicina cubana é boa é uma palhaçada total. Eu fui lá visitar os hospitais e desculpem lá. É boa porquê? Porque operam os doentes todos? E o resto? É só operá-los e mandá-los embora? A medicina cubana tem uma qualidade medíocre A nossa é muito melhor, sem a mais pequena dúvida.
É da opinião que um médico tem de ser um “crânio de dezanoves e vintes”?
Isso é uma consequência da competitividade para entrar para a profissão. Todos nós estamos convencidos que não é um requisito suficiente mas importante. Demonstra vontade, focalização, qualidades de trabalho, dedicação. Os melhores alunos não são necessariamente os melhores médicos mas a maior parte dos médicos que formamos são muito bons.
Já perdeu muitas vidas?
Em 35 anos de carreira já perdi muitas vidas. Os casos que mais nos afectam são aqueles que nós não esperamos. Mas também já salvei tantos, que nem me lembro deles, só dos que perdi. Salvei centenas de pessoas, jovens nomeadamente, que depois saem daqui, têm filhos e netos e nunca se aperceberam que num determinado momento eu fiz qualquer coisa que lhes salvou a vida. Nunca mais os vejo, mas eu sei que eles vão modificar o mundo.
E sobre a eutanásia qual é a sua posição?
Digamos que do ponto de vista conceptual, não me repugna, nem penso que haja quebra de nenhum princípio ético, se um doente competente, não deprimido com autonomia suficiente possa pedir a sua morte, mas tirem os médicos desta cena. Se a sociedade assim o entender, então arranjem enfermeiros ou treinem pessoas a matar pessoas. Eu não quero que uma velhinha olhe para mim a entrar pelo quarto e pergunte se a venho tratar ou se a venho matar. Já deixei morrer muita gente, como é o caso dos cancros avançados, mas nunca matei ninguém. A eutanásia só pode existir se os cuidados paliativos não funcionarem.
Jogador
de râguebi
António Vaz Carneiro licenciou-se em medicina pela Universidade de Lisboa, em 1976, década em que também jogou râguebi com as cores da universidade e pela qual arrecadou uma Taça de Portugal e foi duas vezes vice-campeão nacional. Longe da prática, mantém-se ainda ligado à modalidade que o filho, de 12 anos, também quis praticar, mas lembra que o râguebi de hoje não tem nada a ver com o registo amador daquela época, em que “cada jogador tinha o seu equipamento em casa e tinha de o comprar”. Nos anos 80 trabalhou nos Estado Unidos da América, onde se especializou em Medina Interna e depois em Nefrologia. Desde 1994, ano em que se doutorou pela Faculdade de Medicina da Universidade de Lisboa que é também professor na mesma escola. Durante o seu percurso académico foi professor, director e consultor e membro de diversas entidades ligadas à saúde, em Portugal e no estrangeiro. Hoje, é além de professor e médico no Hospital de Santa Maria, em Lisboa, director do Centro de Estudos de Medicina Baseada na Evidência, cuja imple-
mentação liderou há cerca de 10 anos, director-executivo do Instituto de Formação Avançada e director do programa Harvard Medical School Portugal, além de manter ligação com diversas associações de que são exemplo a FEDRA e Raríssimas, Federação e Associação de Doenças Raras.
Textos: Paula Lagoa
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