quinta-feira, 17 de fevereiro de 2011

A Propósito

de João Fazenda.jpg


A Propósito de “Parva que Sou”, dos Deolinda
André Gago

“Sou da geração sem remuneração
E não me incomoda esta condição
...Que parva que eu sou
Porque isto está mal e vai continuar
Já é uma sorte eu poder estagiar
Que parva que eu sou
E fico a pensar
Que mundo tão parvo
Onde para ser escravo é preciso estudar

Sou da geração "casinha dos pais"
Se já tenho tudo, pra quê querer mais?
Que parva que eu sou
Filhos, maridos, estou sempre a adiar
E ainda me falta o carro pagar
Que parva que eu sou
E fico a pensar
Que mundo tão parvo
Onde para ser escravo é preciso estudar

Sou da geração "vou queixar-me pra quê?"
Há alguém bem pior do que eu na TV
Que parva que eu sou
Sou da geração "eu já não posso mais!"
Que esta situação dura há tempo demais
E parva não sou
E fico a pensar,
Que mundo tão parvo
Onde para ser escravo é preciso estudar”

Deolinda ( ... )



Não é, ainda, e sem com isto querer desmerecer a graça e a oportunidade da canção, um hino. Porque me parece que, na verdade, quer na substância, quer nas entrelinhas (se não claramente nas linhas) se trata mais de uma canção de perplexidade circunscrita que de uma canção de revolta generalizada. É certo que será cantada, repetida, glosada, e mesmo elevada à categoria circunstancial de hino nos próximos tempos, sobretudo estivais, mas não perdurará como tal para além da espuma dos dias. Há uma relativa falta de universalidade na letra, que pretende traçar um retrato geracional sintético e conciso. Há, por exemplo, a particularidade de usar a palavra ‘remuneração’, em vez de ‘salário’. Certamente por razões de rima, mas também porque ‘remuneração’ é um conceito talvez mais próximo da expectativa daqueles que, como a personagem canta, estudaram para alcançar uma posição na vida: estamos longe, portanto, do comezinho ordenado, das expectativas do salário proletário ou do trabalhador não especializado, e ainda mais das dos escravos a que a letra alude (o verso “para ser escravo é preciso estudar” ilustra bem como as expectativas daquele que estuda são altas, e até que ponto ele considera indignas de si as profissões não especializadas que, com algum exagero poético-social, a letra compara ao trabalho escravo). Exploro aqui estas subtis diferenças entre palavras como forma de reflectir sobre as expectativas daqueles que prosseguem estudos e daqueles que abraçam o trabalho possível, mas faço-o sugestionado também pela alteração subliminar do léxico referente ao mundo laboral, praticado pelas instituições de hoje, que procuram acolher conceitos conhecidos sob o cobertor de uma modernidade pia, que a tudo se sente obrigada a acudir, ainda que com meras promoções semânticas de desgraças antigas. É como se, mudando as palavras, os problemas que as palavras mais duras nomeavam deixassem de existir. É assim que o ‘biscate’ passa a ‘trabalho temporário’, e este a ‘estágio’, e só nos lembramos do salário quando está em atraso, porque ‘ordenado’ e de ‘remuneração’ não encaixam bem na métrica das palavras-de-ordem. Para o desemprego, ainda não se arranjou eufemismo. É isso que a canção explora e, a meu ver, bem. Mas as diferenças mantêm-se: fala de uma geração “casa-dos-pais”, uma geração que apostou num nível mais alto de estudos e que não teve, como as gerações anteriores, de todos os estratos sociais, o impulso da emancipação. De facto, o desejo de independência, assumido para o bem e para o mal pelas gerações precedentes, era um desejo profundamente associado à assunção da plena personalidade, o que, inclusivamente, estava à vante da procura de uma estável segurança material. Isto é, não se esperava pela conclusão de um curso para sair de casa dos pais. Arriscava-se, com isso, muitas vezes a conclusão do próprio curso. Mas havia soluções de transição, como as casas partilhadas. E, muitas vezes, as novas famílias e os filhos nasciam nesse contexto, não tendo necessariamente que ser adiados por causa da precariedade dessas situações. Aliás, o adiamento da constituição de família e geração de filhos associa-se, recentemente, muito mais à falta de disponibilidade para a vida familiar, sacrificada em nome de uma carreira profissional, do que à falta de meios para assegurar o sustento da prole. Os versos “Filhos, marido, estou sempre a adiar / e ainda me falta o carro pagar” são rematados por um “que parva que sou”, no que parece ser um comentário a essa exacta contradição: a de se poder escolher entre um encargo com um carro e o encargo com uma família. Ou seja, a canção esconde, por detrás da sua ressonância de hino das circunstâncias, uma crítica interna às razões do descontentamento de que se faz porta-voz: a de se trocar, com infelicidade, a realização pessoal plena pela banal satisfação do impulso consumidor: em vez de um filho, um carro, berço narcísico em que nos pavoneamos pelas ruas para nascer, ou existir, socialmente. Finalmente, a ideia de que há uma espécie de auto-censura a reprimir a legítima revolta desta geração, evocada pelo facto de poder estar a exigir mais do que lhe é legítimo esperar: “ Sou da geração ‘vou queixar-me pra quê?’ / Há alguém bem pior do que eu na TV”. Estes versos da letra são pertinentes, porque enunciam a possibilidade de existir, de facto, um fosso entre os problemas de uns e os problemas de outros. A canção não me parece poder ser um hino exactamente por isto: porque os versos não se dirigem contra os que estão acima, isto é, não elegem adversário, e traem um certo desconforto pelo facto de poder ainda haver quem tenha razões de queixa mais bem fundadas (embora a referência à Tv seja ambígua, na medida em que a simples evocação da Tv nos pode convidar a desvalorizar, mesmo involuntariamente, as queixas de que esta se faça porta-voz, em virtude da sua tradição de superficialidade — isto é, não sabemos se o “alguém que está pior” se refere às reportagens sobre novas levas de desempregados, com responsabilidades familiares e com mais de quarenta anos, ou se são uma referência irónica às apologias da desgraça com que, no caudal televisivo, se confundem espectacularmente causas e sofrimentos). Mas estes versos indicam também um caminho: não devo deixar de me queixar só por existirem outros em pior situação do que eu. Resta saber se esse inconformismo é suficiente para que possa vir a surgir, no próximo futuro, um hino cuja letra possa ser cantada por todos, sem reservas mentais. E resta saber se um tal hino, a existir um dia, poderá ser tão explícito como esta canção.Ver mais

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