domingo, 26 de setembro de 2010

AS ÁGUAS CLARAS: O SUSTENTO DA VIDA CRIATIVA









"Tudo à noite é diferente. Por isso, para entender esta história precisamos mergulhar numa consciência nocturna, um estado no qual percebemos com maior rapidezcada estalido ou ruído. É à noite que ficamos mais próximos de nós mesmos, mais próximos de ideias e sentimentos essenciais que não são tão registrados durante o dia.
A noite é o mundo de Mãe Nyx, a mulher que criou o mundo. Ela é a Velha Mãe dos Dias, uma das megeras da vida e da morte. Quando é noite num conto de fadas, sabemos que estamos no inconsciente. São João da Cruz chamou-a de "noite escura da alma". Nessa história ela é um período em que um homem muito velho vai enfraquecendo cada vez mais. É uma hora na qual estamos nas últimas, em algum sentido importante.
Perder o rumo significa perder a energia. A tentativa absolutamente equivocada quando perdemos o rumo é a de correr para arrumar tudo de novo. correr não é o que devemos fazer. Como vemos na História, sentar e balançar é o que devemos fazer. A paciência, a paz e o balanço renovam as ideias. Só o acto de entreter uma ideia e a paciência para embalá-lasão o que algumas mulheres poderiam chamar de grande prazer. A Mulher Selvagem o considera uma necessidade.
Isso é algo que os lobos conhecem inteiramente. Quando um intruso aparece, os lobos podem rosnar, latir ou até mesmo mordê-lo, mas eles também podem, a uma boa distância, recuar para o interior do grupo, sentando-se todos juntos como uma família faria. as costelas se enchem e se esvaziam, sobem e descem. Eles vão tomando rumo. estão se reposicionando, voltando ao centro de si mesmos, e resolvendo o que é importante e o que fazer em seguida. Estão decidindo que "não vão fazer nada agora mesmo, que só vão ficar ali sentados, respirando, embalando-se juntos".

Ora, quando as ideias não estão funcionando bem, ou quando nós não as estamos trabalhando bem, perdemos nosso rumo. Isso faz parte de um ciclo natural e ocorre porque a ideia ficou ultrapassada, ou porque nós perdemos a capacidade de vê-la por um ângulo novo. Nós mesmas ficamos velhas e desconjuntadas como o velho em " Três cabelos de ouro". embora haja muitas teorias sobre "bloqueios", criativos, a verdade é que bloqueios brandos vêm e voltam como as condições atmosféricas e como as estações do ano - com as excepções dos bloqueios psicológicos de que falamos anteriormente, como não mergulhar na própria verdade, como o medo de regeição, o medo de dizer o que se sabe, a preocupação com a própria competência, a poluição da correnteza básica, entre outros.
Essa história é tão admirável por delinear todo o ciclo de uma edeia, a ínfima luz que lhe é concedida, que é obviamente a própria ideia, o facto de ela se cansar e praticamente se extinguir, tudo como parte do seu ciclo natural. Nos contos de fadas, quando acontece algo de mau, isso significa que algo de novo precisa ser tentado, uma nova energia precisa ser aplicada, uma força mágica, de cura e ajuda precisa ser consultada.
Aqui mais uma vez vemos a velha La Que Sabé, a mulher de dois milhões de anos. Ela é "aquela que sabe". Ser mantida diante do seu fogo é algo revigorante, reparador. é para esse fogo e para os braços dela que o velho se arrasta, pois sem eles ele morreria.
O velho está cansado de passar tepo demais dedicado ao trabalho que lhe demos. Vocês alguma vez viram alguma mulher trabalhar como se o diabo estivesse agarrado no seu dedão do pé, só para de repente entrar em colapso e não dar mais um passo sequer? Você alguma vez viu uma mulher totalmente dedicada a uma questão social que um belo dia virou as costas e mandou tudo para o inferno? É o que seu animus está esgotado. Ele precisa ser embalado por La Que Sabé. A mulher cujas ideias e energias feneceram, precisa saber o caminho até a velha curandera e precisa levar o animus exausto até lá para que ele se recupere.
Trabalho com muitas mulhereas que são activistas sociais, são profundamente engajadas nas questão sociais. Não resta a menor dúvida a esse respeito: quando chega o ponto estremo do seu ciclo, elas ficam exaustas e se arrastam pela floresta afora, com as pernas rangendo e a chama tremeluzindo, pronta para se apagar. É nessa hora que elas dizem: "Para mim, chega. Vou embora. Vou devolver a minha credencial da imprensa, meu distintivo, meu macacão, meu..." nãi importa o que seja. Elas querem emigrar para Auckand. Elas vão ver televisão comendo biscoitinhos de soja e nunca mais olhar pela janela para o mundo lá fora. Elas vão comprar sapatos baratos, vão se mudar para um bairro onde nunca aconteça nada, vão fazer compras por telefone pelo resto de suas vidas. De agora em diante, elas vão se preocupar com sua própria vida, afastar os olhos.... e assim vai.
Qualquer que seja sua ideia de uma trégua, muito embora elas estejam falando com um cansaço e uma frustração humilhantes, eu sempre digo que é uma boa ideia, que chegou a hora de descansar. Ao ouvir issoelas geralmente berram, "Descansar! Como posso descansar quando o mundo inteiro está se destruindo diante dos meus olhos?"
No final, porém, a mulher precisa descansar agora, ser embalada, recuperar seu rumo. Ela precisa rejuvenescer, recuperar sua energia. Ela acha que não pode fazer isso , mas pode sim, pois o círculo de mulheres, sejam elas mães, alunas, artistas ou activistas, sempre se dispõe a suprir a falta das que saem de licença. A mulher criativa precisa de descanso agora para voltar ao seu trabalho intenso mais tarde. Ela precisa ir visitar a velha na floresta, a revitalizadora, a Mulher Selvagem numa das suas muitas apresentações. A Mulher Selvagem já espera que o animus fique exausto com certa regularidade. Ela não se espanta quando ele lhe cai porta adentro. Ela está pronta. Ela não virá correndo até nós em pânico. Ela simplesmente nos apanha e nos segura até que recuperemos nossas forças."

in " Mulhere Que Correm Com Os Lobos pág.411- 413
Clarissa Pinkola Estés


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No "Público" de 26 de Setembro de 2010.

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