"Deixo um texto ao meu filho a explicar quem fui"
por Luís Leal Miranda, Publicado em 04 de Fevereiro de 2010
Urbano Tavares Rodrigues publica aos 86 anos o mais autobiográfico dos seus romances
Fala devagar e baixinho, fechando os olhos no final das frases antes de convocar um silêncio breve. Entusiasma-se quando fala do filho de quatro anos e a sua linguagem muda para um registo quase poético -
"tem um cabelo cor de mel e aqueles olhos verdes", "é a minha obra-prima". O resto da conversa é livre de metáforas, com os pés bem assentes na terra. Tal como "Assim Se Esvai a Vida", novo livro de Urbano Tavares Rodrigues, escritor de 86 anos que afirmava em 2008 ter publicado o seu derradeiro livro.
Disse que "A Última Colina" poderia ser o seu romance final.
Já não me atrevo a dizer essas coisas, até porque tenho outro romance quase pronto. Este ano ainda quero publicar o sexto volume das obras completas.
É o seu livro mais autobiográfico. Porquê expor-se assim agora?
Comecei a escrever uma espécie de diário e a escrita soltou-se, nunca pensei que pudesse ir tão longe. A certa altura dei por mim a falar de mim como nunca falei, caiu completamente a máscara social.
Teve algumas reacções de gente que já o leu?
Algumas delas muito boas. O Mário Cláudio escreveu-me uma longa carta a dizer que teme que o livro não seja lido por muita gente, mas é uma obra com muito alcance. Outra amiga minha disse "não é dos teus livros que eu gosto mais". Eu percebo porquê: tem muitas vezes a palavra "fodido".
O protagonista da primeira parte do seu livro é um antifascista e um conquistador. Duas características que lhe são atribuídas.
Um conquistador é um homem de olhar frio que colecciona mulheres, isso eu nunca fui. O Felisberto Roxo, personagem inspirado nas minha vida, anda aos encontrões na vida e as mulheres são acasos. Às vezes é só sexo, raras vezes encontra realmente o amor. Tem, no entanto, um grande coração.
Como encara o envelhecimento?
É doloroso. Tenho um glaucoma na vista que me diminui muito a visão, só posso ler com esta luz [aponta para um candeeiro de mesa]. Agravou-se também a minha doença do coração a um ponto extremo. Felizmente ainda consigo ter vida sexual: a libido diminui mas ainda tenho desejo e prazer. E isso é bom, ajuda a passar melhor os dias.
Disse numa entrevista, há cerca de três anos, que esperava tranquilamente pela morte. Mantém essa paz?
Não, nada disso. Agora inquieta-me o meu filho [António, de quatro anos]. Penso em como lhe vou fazer falta, não sei como vai ser a vida dele sem mim. Claro que a minha mulher tem possibilidades de o sustentar, mas a vida dele sem mim assusta-me. Tive uma filha com a Maria Judite de Carvalho, dei-lhe muito carinho mas não é a mesma coisa. Agora tenho mais tempo para o ver crescer, é uma coisa impressionante: inteligentíssimo, com uma série de talentos e curiosidades. Gosta de desenhar, tem uma grande sensibilidade artística ao mesmo tempo que é óptimo a jogar à bola. Faz puzzles que eu não consigo fazer. Desmonta brinquedos, mas também estraga.
Preocupa-o como o seu filho o vai recordar?
Tenho um texto escrito já há um tempo que se chama "Meu António Querido, quando fizeres dez anos vais ler estas palavras". Ocupa uma folha e explica quem eu fui, como eu gostava que ele me visse e como eu gostava que ele fosse. Para já está tudo bem, excepto que eu sou benfiquista e ele não.
Um dos temas recorrentes deste livro, e de toda a sua obra, é a luta antifascista. Ficou ressentido com algumas pessoas. Tentou fazer ajustes de contas?
Não. Isso não está na minha natureza. Só se tivesse encontrado na rua o comandante da legião portuguesa que me esmurrou e partiu o maxilar, aí dava-lhe um soco. Fiquei-lhe com uma raiva particular. Ia a entrar para o meu carro e fui cercado, depois de um comício. Andei à pancada com eles, eles também levaram murros e pontapés. Mas depois levei, levei, levei até cair.
O seu comunismo manteve-se inquebrável?
Sempre, apesar de ter tido grandes discussões com o Cunhal, por exemplo. Disse-lhe que devíamos denunciar a tortura e as coisas que se faziam na União Soviética mas ele insistiu que não. Dizia "Urbano, nós somos nós, denunciar isso é só dar armas aos EUA, o inimigo da humanidade". Não me convenceu. Ele dizia que eu era comunista apenas de coração, e não de cabeça.
Sei que deixou as suas propriedades no Alentejo aos camponeses. Porquê?
Depois do 25 de Abril, quando começou a reforma agrária, eu e o meu irmão entregámos as terras aos trabalhadores alentejanos. Foi um gesto romântico, separei-me de uma casa da qual tinha um amor profundo.
Foi um gesto carregado de ideologia também.
Se não fosse isso era hoje um homem rico. Mas não quero saber. Fiz aquilo que achava certo e coerente com as minhas convicções.
De onde vêm essas convicções?
O meu pai foi director de jornal e deputado do partido da esquerda republicana - era o que hoje se chamaria um socialista de esquerda. Tinha um cão chamado Carmona e outro chamado Salazar para o poder insultar à vontade. Era muito amigo dos homens da Guerra de Espanha. Para além disso a minha infância no Alentejo importou: foi lá que me apaixonei pela natureza e aquele povo. Os meus primeiros amigos eram todos de lá. A pouco e pouco fui compreendendo a miséria deles, a dor, as expectativas que tinham - ou não tinham. Desde pequeno comecei a desejar uma sociedade igualitária, mas era católico nessa altura e as duas coisas estavam ligadas. Só quando deixei de abandonar o catolicismo, a minha consciência se tornou revolucionária.
"Assim Se Esvai a Vida", Urbano Tavares Rodrigues, Dom Quixote
Urbano tavares Rodrigues entrevistado por Anabela Mota Ribeiro*******************
http://anabelamotaribeiro.pt/53707.html
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